As sutilezas da ajuda

Compare:

(1) “Ajudam-se desabrigados.”
(2) “Ajuda-se aos desabrigados.”

Apesar de muito semelhantes, as duas frases apresentam estruturas gramaticais bem diferentes.

A principal diferença é a função do pronome “se”. Na frase 1, é usado como pronome apassivador. Na frase 2, funciona como índice de indeterminação do sujeito.

Essa diferença é determinante para entender por que na frase 1 o verbo está no plural e, na frase 2, está no singular.

A frase 1 apresenta o verbo “ajudar” na voz passiva. A voz passiva indica que a ação verbal é recebida pelo sujeito. Assim, “desabrigados” recebem a ação verbal de “ajudar”, isto é, recebem ajuda. A transformação da frase 1 para a voz ativa produz a seguinte frase:

(3) “Desabrigados são ajudados.”

Portanto, o sujeito da frase 1 é “desabrigados”, no plural; assim, para que o verbo concorde com o sujeito, também deve estar flexionado no plural.

Já na frase 2, o verbo está na voz ativa. Porém, ao contrário da frase 3, a frase 2 apresenta sujeito indeterminado. Isso significa que “os desabrigados” é objeto indireto do verbo “ajudar” — por isso, aliás, é precedido pela preposição “a”.

Portanto, como a concordância verbal não se dá com o objeto, é irrelevante que “os desabrigados” esteja no plural; tratando-se de sujeito indeterminado pelo pronome “se”, o verbo deve estar na terceira pessoa do singular.

Há diversas maneiras de indeterminar o sujeito. A forma aqui analisada expressa uma situação em que, embora o sujeito não seja identificado, é chamado a se envolver na ação. A frase 2 poderia ser reescrita da seguinte maneira:

(4) “Dá-se ajuda para os desabrigados.”

Quem dá ajuda aos desabrigados? Alguém, certamente, dá essa ajuda. Mas não se sabe quem. A frase 2 indica, portanto, que alguém presta ajuda aos desabrigados — talvez sob a condição do anonimato.

Mas, se repararmos bem, o mesmo ocorre na frase 1: os desabrigados são ajudados por quem? Também não se sabe: neste caso, a frase nada indica.

Portanto, como se vê, mesmo com todas as diferenças estruturais que apresentam, nenhuma das frases revela quem é o responsável pela caridade.

Contudo, é possível interpretar a generosidade da frase 1 como um ato mais desinteressado do que a anunciada pela frase 2. Afinal, na frase 2 os desabrigados são objeto indireto e, na frase 1, sujeito.

Assim, o altruísmo descrito na frase 1 foi capaz de mitigar o próprio autor da ação caridosa para transformar os desabrigados em sujeitos.

Uma sutileza que pode fazer diferença!