Afinal, como escrevem os escritores?

Há inúmeras formas de abordar o processo de construção de uma estória, tantas quanto há escritores e leitores.

Como escrevem os escritoresUma classificação muito popular atualmente divide os criadores entre aqueles que planejam todos os detalhes do texto antes de escrevê-lo e aqueles que simplesmente se sentam e escrevem sem nenhum planejamento prévio. O apelido de cada tipo varia. O roteirista português João Nunes adota a denominação “paisagistas” e “jardineiros”. No mercado editorial de língua inglesa, os dois tipos são conhecidos como “plotters” e “pantsers”.

O romancista turco Orhan Pamuk gosta de se referir aos dois tipos como “ingênuos” e “sentimentais” (seguindo distinção proposta por Schiller). Os artistas ingênuos são aqueles cuja arte flui naturalmente de sua mente, como se a melodia estivesse na ponta dos dedos do músico e este fosse apenas um instrumento da natureza. Já os artistas sentimentais são aqueles que refletem sobre o fazer artístico: um romancista consciente de que o romance que escreve possui um enredo; um músico consciente de que a melodia que toca possui uma forma abstrata, etc.

Meu caminho pessoal com a arte começou na música e, por isso, eu gosto de usar uma metáfora musical para diferenciar os dois tipos. O compositor-planejador (ou: paisagista, plotter) calcula matematicamente o efeito de cada nota musical, anotando o resultado desse cálculo em uma partitura para só depois testar ao piano se o efeito planejado ficou agradável. O improvisador (ou: jardineiro, pantser) senta-se logo ao piano e vai experimentando as teclas, ouvindo cada nota cuidadosamente para atender ao pedido que ela lhe faz: uma nota pede outra e assim por diante até que uma melodia surge espontaneamente.

Antes que você me critique por simplificar demais as coisas: nenhum criador é puramente de um tipo (há, entre um e outro tipo, todo um arco-íris de possibilidades híbridas — e há, é claro, aqueles criadores que não se submetem a nenhuma classificação). Esta simplificação do processo criativo tem como único objetivo facilitar a compreensão do processo criativo particular de cada artista. Na prática, quando criamos, as classificações não importam.

Além disso, é preciso reconhecer que os conceitos discutidos por Pamuk não correspondem inteiramente a essa classificação. É perfeitamente possível ser, ao mesmo tempo, um escritor improvisador e “sentimental”, isto é, escrever estórias sem um plano preliminar e ainda assim refletir sobre o fazer literário.

Stephen King é um dos mais conhecidos pantsers; segundo ele, “Construir um enredo é o último recurso do bom escritor e a primeira escolha dos tolos. A estória que resulta daí nós a sentimos como algo artificialmente trabalhado.” Esta declaração radical está no livro Sobre a escrita, um clássico da reflexão sobre o ofício do escritor.

J K Rowling - Order of the Pheonix plot tableNo outro extremo, também podemos citar um autor de sucesso, Ken Follett, conhecido por seu método de planejamento intenso. Segundo ele: “Como um aspirante a escritor, certamente você deve começar escrevendo um esboço. (...) Resolvem-se muitos problemas com um esboço. Será muito mais fácil corrigir seus erros se você escrever um esboço do que se você simplesmente se sentar e escrever “Capítulo Um” no cabeçalho de uma folha e seguir escrevendo a partir daí. Se você trabalha desta maneira, levará um tempo terrivelmente longo para corrigir seus erros. (...) O esboço apresenta, capítulo por capítulo, o que acontece no livro e contém minibiografias de cada um dos personagens. Mais importante, porém, apresenta, para mim e para os meus editores, quais são os dramas da estória.”

Para além das óbvias diferenças entre o método de cada escritor, percebe-se que métodos diferentes refletem obras diferentes. As estórias contadas por Stephen King giram em torno de um evento ou sentimento que faz emergir a verdadeira natureza de um pequeno grupo de personagens. Já as estórias de Ken Follett possuem enredos complexos, com diversos personagens que desempenham múltiplas funções na trama, cuja ação geralmente se estende por vastos períodos de tempo.

Mas os métodos não variam apenas entre autores diferentes. Um mesmo autor pode abordar cada uma de suas estórias de modos diversos. Ernest Hemingway descreveu da seguinte maneira seu processo criativo: “Às vezes você conhece a estória. Às vezes você vai criando enquanto escreve e não tem ideia de como vai ser. Tudo muda conforme a estória se move. É isso que faz o movimento que faz a estória. Às vezes o movimento é tão lento que nada parece estar se movendo. Mas há sempre mudança e há sempre movimento.”

Sem dúvida, cada escritor possui métodos particulares de criação, e sempre haverá aspectos positivos e negativos conforme o ponto de vista de cada observador. Se, por um lado, escrever de improviso propicia um texto mais natural e espontâneo, há alguns riscos.

Breaking Bad - s04e01 four actsAldous Huxley enfrentava o risco de se perder em encruzilhadas: “Eu trabalho em um capítulo por vez, encontrando meu caminho conforme sigo. Eu não sei muito bem quando se iniciam os eventos narrados. Eu só tenho uma ideia muito geral e, em seguida, a coisa se desenvolve enquanto estou escrevendo. Às vezes — isso aconteceu comigo mais de uma vez — eu vou escrever algo grande, então simplesmente não consigo encontrar o que preciso e sou obrigado a jogar tudo fora. Gosto de terminar um capítulo antes de começar o próximo. Mas nunca estou totalmente certo do que vai acontecer no próximo capítulo até que eu trabalhe nele. As coisas me vêm em gotas e, quando essas gotas vêm, tenho que trabalhar duro para transformá-las em algo coerente.”

Georges Simenon, autor de mais de trezentos livros, também lutava contra o risco de abandonar todo o trabalho: “Eu não sei nada sobre os acontecimentos quando eu começo o romance. (...) Eu não sei absolutamente nada sobre os eventos que ocorrerão mais tarde. (...) Dia após dia, capítulo após capítulo, vou encontrando o que acontece na sequência. Depois de eu ter começado um romance escrevo um capítulo por dia, sem nunca perder um dia. Porque há uma tensão, eu tenho que manter o ritmo do romance. Se, por exemplo, eu fico doente por 48 horas, sou forçado a jogar fora os capítulos já escritos. E eu nunca mais volto a esse romance.”

Planejar um texto antes de efetivamente se sentar para escrevê-lo ajuda a evitar dispersões, ajuda a manter o foco. Para E. M. Forster, autor de outra obra clássica sobre a escrita — Aspectos do romance —, “O romancista deve, segundo penso, sempre estabelecer em que momento se iniciam os eventos a serem narrados, e qual será o grande acontecimento. Ele pode alterar este evento conforme ele se aproxima; na verdade, ele provavelmente vai alterá-lo; de fato, provavelmente é melhor que ele o faça, ou o romance torna-se amarrado e limitado. Mas a sensação de ter uma massa sólida à frente, uma montanha a ser contornada ou penetrada, através da qual a estória deve de alguma forma ir, é um processo bastante valioso e, para os romances que eu tentei escrever, essencial.”

Norman Mailer - Harlot’s GhostVladimir Nabokov era um notório planejador: “O padrão da coisa precede a coisa. Eu preencho as lacunas das palavras cruzadas em qualquer linha ou coluna à minha escolha. Estes pedaços eu escrevo em fichas até que o romance esteja concluído.” Segundo Nabokov, Lolita “é um quebra-cabeça cuja composição e solução ocorrem ao mesmo tempo, por serem uma o espelho da outra, dependendo de como se olha”. Já Fogo pálido “está cheio de pistas que fico esperando alguém encontrar”. Ada, que resultou da junção de dois projetos distintos, “foi fisicamente mais difícil de compor do que os meus romances anteriores por causa de seu maior comprimento. Quanto às fichas em que eu escrevo e reescrevo as minhas coisas a lápis, foram utilizadas, na versão final do livro, cerca de 2.500 fichas que minha datilógrafa transformou em mais de 850 páginas.”

Por outro lado, se o planejamento dá ao escritor uma sensação de segurança e ajuda a evitar muitos tipos de bloqueio criativo, há sempre o risco de planejar demais e nunca começar a escrever. É preciso encontrar um equilíbrio! Muitas vezes temos apenas uma ilusão de planejamento e, quando finalmente nos lançamos ao texto, percebemos que toda essa preparação não passou de uma manobra astuciosa para nos autoenganar e adiar indefinidamente a escrita.

Truman Capote, vítima de um bloqueio criativo que durou mais de dez anos (planejou um romance em sete capítulos, Súplicas atendidas, mas concluiu apenas três antes de falecer), tinha consciência desse perigo: “Eu invariavelmente tenho a ilusão de que toda a trama de uma estória, seu começo, meio e fim, ocorrem em minha mente ao mesmo tempo — que eu estou vendo isto em um flash. Mas ao trabalhar efetivamente, ao escrever efetivamente, infinitas surpresas acontecem. Graças a Deus, porque a surpresa, a reviravolta, a frase que vem no momento certo “do nada” é a recompensa inesperada, esse empurrãozinho que nos dá a alegria necessária para continuar. Até um tempo atrás, eu costumava manter cadernos com esboços para estórias. Mas eu percebi que fazer isso de alguma forma amortecia as ideias na minha imaginação. Se a faísca é boa o suficiente, se ela realmente pertence a você, então você não vai esquecê-la — ela vai te assombrar até que seja escrita.”

Will Self - writing roomCertamente, poucos têm o privilégio de receber adiantamentos milionários para não escrever um livro polêmico. O efeito que as pressões cotidianas suscitam revela-se no método de Jack Kerouac: “Eu tive a ideia para o estilo espontâneo de On the road ao ver como o bom e velho Neal Cassady escrevia suas cartas para mim, tudo na primeira pessoa, rápido, louco, num estilo confessional, completamente sério, tudo detalhado. (...) Você reflete sobre o que realmente aconteceu, conta aos seus amigos longas estórias sobre isso, medita bastante sobre isso, você vai conectando as coisas em momentos de lazer, então quando chega a hora de pagar o aluguel novamente você se obriga a pegar a máquina de escrever, ou um caderno, e acaba com isso o mais rápido possível ... e não há mal nenhum nisso porque você já tem toda a estória delineada.” Entre outras características deste método, nota-se que é um híbrido entre planejamento e improviso.

Não importa que você seja um planejador ou um improvisador: qualquer método é válido para a escrita. No fundo, os procedimentos de cada escritor são um reflexo da sua personalidade. Porém, se eu posso te dar alguma sugestão realmente valiosa seria esta: tente incorporar à sua escrita alguns dos procedimentos do método oposto. Ou, nas palavras de Orhan Pamuk: “Quanto mais o romancista consegue ser, ao mesmo tempo, ingênuo e sentimental, melhor ele escreve.” Se escrever é um exercício de empatia, experimentar outros métodos é uma forma de vivenciar a personalidade do outro.

Em termos práticos, proponho o seguinte:

Se você é um planejador: após desenhar o esqueleto de cenas do seu romance e fixar o respectivo post-it em um quadro, escreva cada cena como um improvisador. Liberte-se do seu plano: apenas a palavra que você acaba de escrever determina a palavra seguinte, ouça a sonoridade de cada uma, aguce os sentidos para captar nas entrelinhas a direção que o texto vai tomando e apenas observe, deixe o texto criar vida própria. Não se preocupe: depois você poderá revisar o texto conforme o esboço preliminar; quem sabe, virá à tona uma reviravolta original que jamais poderia ter sido planejada!

Se você é um improvisador: depois de escrever livremente o primeiro rascunho do seu romance, releia o texto, anotando cada elemento narrativo (funções e dimensões dos personagens, reviravoltas da trama, possíveis ganchos, conflitos, etc.) e analisando a força, a originalidade e os eventuais caminhos que cada um desses elementos suscita — como um planejador faria desde o princípio. Observe se é possível fazer algum ajuste na motivação dos personagens, na estrutura da trama, etc., observe se é necessário amarrar alguma ponta solta e não tenha receio de recortar e reorganizar o texto de acordo com as conclusões da sua análise.

Caso você tenha dúvidas sobre um ponto específico do seu conto, novela ou romance e precise de dicas concretas direcionadas ao seu texto, sinta-se à vontade para nos enviar um e-mail. Teremos o prazer de fazer um orçamento que atenda às suas necessidades.