Os novos meios e o futuro dos livros

Todas as mídias que conhecemos passam por um processo que pode ser assim resumido:

  1. Invenção e desenvolvimento de suas possibilidades pelos pioneiros;
  2. Tentativa de tornar essa mídia um negócio lucrativo, via dois modelos: pagamento (destinatário paga pelo conteúdo) ou publicidade (destinatário não paga pelo conteúdo, mas aceita que as propagandas custeiem a sua produção) — sem falar de modelos com custeio indireto (via impostos, por exemplo) e de modelos mistos;
  3. Decadência da mídia, ou porque o pagamento do público não é suficiente para bancar os custos e dar lucro, ou porque o canal se encontra sobrecarregado de publicidade e conteúdo de baixa qualidade;
  4. Invenção de uma nova mídia, que reúne os prós e os contras das mídias anteriores e leva adiante o mesmo processo, em espiral.

O livro é uma mídia. Devido a suas características (filtro de conteúdo, custos de produção, distribuição em nichos ou em larga escala, etc.), o negócio dos livros vem passando por esse processo lentamente.

Entrevista com André Schiffrin no Roda Viva, um dos poucos programas da televisão brasileira que ainda se preocupa com a consistência do debate cultural

No início do rádio e da televisão, pensava-se que a alta cultura seria divulgada em massa para todos os cantos do mundo. O editor André Schiffrin nos lembra que podiam ser vistas peças de Sartre pela televisão. Hoje, porém, a televisão está tomada por programas pasteurizados em que os participantes jamais ouviram falar em Sartre.

Isso também está acontecendo com a Internet. Desde o início, seus criadores sabiam que o uso comercial deste meio levaria à sua decadência. E é isto o que vemos hoje: o fluxo esmagador de conteúdo gira em torno de um eixo retroalimentado pela publicidade, raspando a tábula da comunicação até não restar matéria para novas incisões. Até mesmo o debate em torno de questões políticas é feito desta maneira; basta ter em mente que a política se resume, na Internet, a slogans do tipo “Fora Fulano” e memes descontextualizados.

Em suma: ridicularizar para não explicar; infantilizar o debate para prender a atenção do consumidor; transformar a cultura em produto.

Apenas para dar um giro de maior amplitude antes de voltar à questão dos livros, é importante citar outros dois exemplos: o da música e o das notícias, sobretudo nas suas características que mais interessam para o problema central deste texto.

Os sebos se tornaram museus da produção musical em vinilA música, como conteúdo, vem sendo veiculada ao longo da história da humanidade por meio de diversos suportes. Os concertos apresentados em teatros e os shows apresentados em bares são meios de veicular a música. O disco de vinil e o CD são meios. Os formatos digitais (wav, mp3, flac) são meios. Os canais de distribuição e consumo (rádio, iTunes, Spotify) são meios. Cada um desses meios funciona como intermediário entre o músico, produtor do conteúdo, e o ouvinte. Duas características interessam para a questão dos livros:

  1. Há um preconceito corrente que supõe o seguinte: quanto mais primitivo o meio, maior a qualidade da produção. Assim, a música ao vivo seria melhor do que a música veiculada em discos, que seria melhor do que aquela veiculada em CDs e do que aquela veiculada em mp3. Mas essa ideia não é, necessariamente, verdadeira. Cada meio tem particularidades a serem exploradas pelos produtores; cada meio permite a criação de um conteúdo que explore as suas características particulares. Além disso, cada meio pode interagir com os demais, levando à transmidiação — assunto tão vasto que seria possível preencher vários livros sem esgotá-lo.
  2. Os modelos de sustentabilidade podem ser observados na comparação entre o rádio (tomado por propagandas e jabá) e os serviços de streaming (além de haver produtores de conteúdo exclusivo para este meio, o ouvinte pode criar a sua própria “rádio” e ouvir músicas sem jamais ser interrompido por uma única propaganda — mediante o pagamento de uma mensalidade).

A notícia, como conteúdo, também vem sendo veiculada ao longo da história por meio de diversos suportes. O principal elemento que interessa para este texto é o seguinte: todos os jornais expressivos da atualidade estão enfrentando a questão da sustentabilidade. Qual é a medida entre cobrar do leitor e veicular propagandas, a fim de garantir a produção contínua de conteúdo relevante e lucrativo?

É ingênuo pensar que o mesmo processo não acontece com a cultura letrada. Os livros nada mais são do que um meio de veicular textos escritos. Os jornais, as revistas, os tabloides, os pergaminhos, os panfletos, os folhetins, os blogs, o mural do Facebook, etc. — tudo isso são meios que servem (também) para veicular textos escritos. Cada um possui características que lhe tornam mais adequado para a veiculação de um conteúdo próprio. Devido às suas características, o livro é um meio ideal para a veiculação de textos grandes, sejam textos que contam a estória complexa de um grupo de personagens, sejam textos que desenvolvem um raciocínio complexo e com várias implicações. Assim, por exemplo, o surgimento dos romances, na história da literatura, está intrinsecamente ligado à consolidação do processo industrial de produção dos livros.

É difícil pensar seriamente nos blogs como meio adequado para a publicação de um romance. Mas já é mais fácil pensar nos e-books como meio adequado para isso — muito embora o e-book tenha particularidades que suscitem a reformulação do texto a fim de readequá-lo ao meio. Este é um movimento presente em toda a história da cultura: o desenvolvimento de um novo meio leva à produção de um novo tipo de conteúdo.

Portanto, mais do que pensar no que está acontecendo com os livros, é preciso pensar no que está acontecendo com a cultura letrada.

Qual é o equivalente moderno da Biblioteca de Alexandria?

Hoje em dia, já não se criam mais poemas épicos. Este era um formato corrente de contar estórias antes da disseminação e consolidação da escrita. Mais de dois milênios depois de as grandes epopeias gregas serem cantadas por aedos, algumas poucas epopeias escritas conviviam, no final da Idade Média, com novelas de cavalaria. A partir da produção industrial de livros, a literatura passou a ser dominada pelos romances e coleções de contos.

Atualmente, há uma convivência entre diversos meios e diversos tipos de conteúdo. Há folhetins sendo veiculados em sites como o WattPad. Há minicontos sendo veiculados em blogs. Há microcontos sendo veiculados no Twitter. E há sagas imensas veiculadas em livros (só para ficar nos exemplos mais populares: Harry Potter e As Crônicas de Gelo e Fogo).

O problema dos livros não é o surgimento de novos meios. Quer dizer: os e-books não vão extinguir o livro. Os meios convivem uns com os outros na medida em que o conteúdo próprio daquele meio continua a ser culturalmente relevante. Vale dizer: enquanto houver escritores escrevendo romances, haverá livros sendo publicados. E mais: há conteúdos que somente podem ser veiculados em livro: livros de arte e de fotografia, por exemplo, não podem ser desfrutados em formato digital tão bem quanto em um suporte físico. E isso nos leva a uma questão paralela, que é a da qualidade do trabalho de produção gráfica dentro do contexto editorial (os livros publicados pela Cosac Naify devem ser citados) — mas o assunto fica para outro texto.

O problema dos livros é a sustentabilidade do negócio editorial. Então, ao invés de choramingar contra os blogs e os e-books, é mais inteligente compreender como os grandes conglomerados midiáticos estão empenhados a reformular a lucratividade da cultura letrada e, nesse processo, estão enterrando os pequenos produtores (escritores, editores, gráficas e livreiros que atuam em pequena e média escala).

Sejamos claros: o problema dos livros é, por exemplo, a Amazon ter como objetivo negocial a extinção das livrarias; o problema é, por exemplo, que as editoras somente aceitem publicar manuscritos de autores consagrados, pois o departamento de contabilidade não sabe lidar com o risco de publicar um autor estreante; o problema é o público leitor se pautar pelas listas de mais vendidos; o problema é a verba cada vez mais escassa das bibliotecas públicas. E assim por diante.

O futuro dos livros não está assim tão vinculado aos novos meios. O que é crucial são os modelos de negócios.

Ao invés de procurar a luz no fim do túnel, que tal entender como os tijolos formam as paredes do túnel?

Não é possível pensar em termos econômicos sem pensar no seu correspondente jurídico: toda a economia capitalista possui uma relação umbilical com a legislação. O objetivo deste texto não é propor soluções, mas apenas redirecionar o debate em torno da questão do futuro dos livros e fazer um alerta: a legislação precisa proteger a cultura; do contrário, as forças do mercado irão soterrar a produção cultural.

Que tipo de proteção legal o mercado editorial brasileiro precisa desenvolver se quisermos que o livro (como meio de veiculação cultural) tenha um papel relevante em nosso futuro?