O ano de 2015 foi bastante conturbado para quem trabalha com livros. Entre dobras e refilos, o ano fechou com uma polêmica envolvendo a visibilidade que as mulheres escritoras recebem na mídia — e no próprio mercado editorial.
A Ana Rüsche (“Acordados”, Demônio Negro, 2007) publicou um texto apontando “como a intensa produção de poesia feita por mulheres no Brasil segue invisível”. As conclusões são espantosas: nas antologias comentadas pela Ana, há um total de 192 poetas (incluindo nomes duplicados em mais de uma antologia), dos quais apenas 18 são mulheres (contando as que se repetem). Oito homens contra uma mulher.
Esses números assustam ainda mais quando sabemos que a maioria das pessoas que leem e escrevem poesia (e literatura, de modo geral) — bem como a maioria dos que trabalham no mercado editorial — são mulheres. Como assim? As mulheres são as que mais leem, são as que mais escrevem e são as que mais trabalham com livros, mas são as menos publicadas? Com certeza há algo errado nessa assimetria — e não, não é um problema de qualidade. É uma questão política!
Que fique claro: a disparidade entre o número de livros publicados por homens e mulheres é uma faceta da violência praticada contra as mulheres.
Esse fenômeno já foi objeto de estudo. Regina Dalcastagnè, professora da UnB, coordenadora de uma pesquisa sobre a personagem dos romances brasileiros contemporâneos, analisou “258 obras, o que corresponde à soma dos romances brasileiros do período entre 1990 e 2004” publicados pelas principais editoras brasileiras. Entre suas conclusões, destacam-se: 72,7% dos romances publicados nesse período foram escritos por homens; além disso, 93,9% dos autores e autoras estudados são brancos.
Nesse sentido, vale a pena prestar atenção na questão problematizada pela Bianca Goncalves no Blogueiras Negras: quantas autoras negras você já leu? Se o número de mulheres publicadas é muito menor em relação ao número de homens, a quantidade de escritoras negras que recebem a atenção do mercado editorial é menor ainda!
Essa violência tem sido combatida com bastante perseverança. Desde 2014, por exemplo, um movimento internacional chamado “Read Women” (aqui no Brasil, “Leia Mulheres”) visa promover a literatura produzida por mulheres. Entre outros frutos, eu gosto de citar as várias listas de livros que começaram a ser divulgadas pela mídia.
Uma das mais legais, por exemplo, foi elaborada pela Lady Sybylla, que escreveu, em seu excelente blog Momentum Saga, um post indicando 52 autoras de ficção científica. Outra lista legal foi elaborada pela Thaís Campolina e publicada no blog Ativismo de Sofá.
E por falar em listas, recomendo prestar atenção ao mapeamento das mulheres na literatura marginal/periférica, que é parte de uma pesquisa acadêmica conduzida pela Jéssica Balbino e encontra-se disponível nas Margens. Aproveite para se automapear!
Também é interessante notar que os concursos literários começaram a prestigiar um pouco mais as escritoras. Se fizermos uma lista com os romances brasileiros premiados nos últimos anos, podemos constatar que o número de mulheres premiadas vem aumentando gradualmente. Mas ainda assim é pouco: no mesmo período, a fração de romances premiados escritos por homens é muito maior. Portanto, ainda precisamos lutar bastante!
Eis a lista completa de romances brasileiros escritos por mulheres e premiados nos últimos anos:
- Clair de Mattos. Mosaico em branco e preto. Rio de Janeiro: Razão Cultural, 1999. (Prêmio ABL de Ficção, 2000).
- Patrícia Melo. Inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. (Jabuti, 2001).
- Maria José Silveira. A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas. São Paulo: Globo, 2002. (Troféu APCA, 2002).
- Ana Miranda. Dias & Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. (Prêmio ABL de Ficção, 2003; e Jabuti, 2003).
- Adriana Lisboa. Sinfonia em branco. Rio de Janeiro: Rocco, 2001; Lisboa: Temas e Debates, 2003. (Prémio José Saramago, 2003).
- Nélida Piñon. Vozes do deserto. Rio de Janeiro: Record, 2004. (Jabuti, livro do ano, 2005).
- Eugênia Zerbini. As netas da Ema. Rio de Janeiro: Record, 2005. (Prêmio Sesc de Literatura, 2005).
- Ana Maria Gonçalves. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006. (Casa de las Américas, 2007).
- Idalina Azevedo da Silva. O tempo físico. São Paulo: Scortecci, 2007. (Prêmio Machado de Assis – FBN, 2007).
- Beatriz Bracher. Antonio. São Paulo: Editora 34, 2007. (Jabuti, 2008; e Portugal Telecom, 2008).
- Tatiana Salem Levy. A chave de casa. Rio de Janeiro: Record, 2007. (Prêmio São Paulo de Literatura, 2008).
- Carola Saavedra. Flores azuis. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. (Troféu APCA, 2008).
- Maria Esther Maciel. O livro dos nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. (Casa de las Américas, menção, 2009).
- Gabriela Guimarães Gazzinelli. Prosa de papagaio. Rio de Janeiro: Record, 2010. (Prêmio Sesc de Literatura, 2010).
- Elvira Vigna. Nada a dizer. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Prêmio ABL de Ficção, 2011).
- Andréa del Fuego. Os malaquias. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010. (Prémio José Saramago, 2011).
- Suzana Montoro. Os hungareses. São Paulo: Ofício das Palavras, 2011; Rio de Janeiro: Rocco, 2013. (Prêmio São Paulo de Literatura, 2012).
- Luisa Geisler. Quiçá. Rio de Janeiro: Record, 2012. (Prêmio Sesc de Literatura, 2012).
- Ana Maria Machado. Infâmia. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2011. (Prêmio Passo Fundo de Literatura, 2013).
- Lya Luft. O tigre na sombra. Rio de Janeiro: Record, 2012. (Prêmio ABL de Ficção, 2013).
- Paula Fábrio. Desnorteio. São Paulo: Patuá, 2012. (Prêmio São Paulo de Literatura, 2013).
- Veronica Stigger. Opisanie Świata. São Paulo: Cosac Naify, 2013. (Prêmio Machado de Assis – FBN, 2013; Jabuti, 2014; e Prêmio São Paulo de Literatura, 2014).
- Ana Miranda. O peso da luz: Einstein do Ceará. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2013. (Prêmio Brasília de Literatura, 2014).
- Ana Luísa Escorel. Anel de vidro. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2014. (Prêmio São Paulo de Literatura, 2014).
- Vanessa Barbara. Operação impensável. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015. (Prêmio Paraná de Literatura, 2014).
- Débora Ferraz. Enquanto Deus não está olhando. Rio de Janeiro: Record, 2014. (Prêmio São Paulo de Literatura, 2015; e Prêmio Sesc de Literatura, 2014).
- Elvira Vigna. Por escrito. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. (Prêmio Oceanos, 2015).
- Maria Valéria Rezende. Quarenta dias. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014. (Jabuti, 2015).
- Micheliny Verunschk. Nossa Teresa: vida e morte de uma Santa Suicida. São Paulo: Patuá, 2014. (Prêmio São Paulo de Literatura, 2015).
- Tércia Montenegro. Turismo para cegos. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. (Prêmio Machado de Assis – FBN, 2015).
- Sheyla Smanioto. Desesterro. Rio de Janeiro: Record, 2015. (Prêmio Sesc de Literatura, 2015).
Ao chegar ao final desta lista, algumas considerações precisam ser feitas.
O que essa disparidade quer dizer? Cada um dos concursos analisados na minha pesquisa possui regras próprias, mas, de um modo geral, podemos dizer que são premiadas obras publicadas no ano do concurso ou no ano anterior (o Prêmio Sesc é uma importante exceção, pois somente aceita a inscrição de obras inéditas). Ou seja, uma das minhas hipóteses é que a assimetria na premiação de romances escritos por homens ou mulheres seria um reflexo da disparidade no número de romances publicados. Esta ainda é uma pesquisa em andamento; um futuro passo será analisar o total de romances que foram inscritos nos concursos, por exemplo.
Talvez fique mais claro apresentando esses números em um gráfico:
Esses livros são os melhores romances publicados por mulheres, no Brasil, nos últimos anos? Não. Muitos livros ótimos ficaram de fora desta lista simplesmente por causa de critérios como (i) quais concursos eu considerei ou (ii) livros que foram finalistas nos prêmios não entram na lista. Por exemplo, a Carol Bensimon recebeu a Bolsa Funarte de Estímulo à Criação Literária para escrever um romance, “Sinuca embaixo d’água” (Companhia das Letras, 2009), que depois foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura, Jabuti e Bravo. Porém, como eu não contabilizei nem os romances que receberam a bolsa da Funarte, nem os romances finalistas nesses concursos, o livro dela não figura na lista deste post.
Outro ponto: o fato de ter vencido ou não um prêmio não garante a qualidade do livro. O mecanismo por trás dos concursos literários nem sempre prestigia as virtudes literárias de uma obra. Há inúmeros livros excelentes que jamais foram sequer publicados, não tendo a menor chance de disputar um prêmio. E há livros premiados envoltos em polêmicas quanto à justiça da premiação. Esta lista não é uma lista dos melhores romances publicados por mulheres, no Brasil, nos últimos anos; esta é uma lista dos romances escritos por mulheres e que receberam prêmios. A intenção é mostrar, em primeiro lugar, que o mercado editorial tem prestado mais atenção à literatura escrita por mulheres — embora, como muito bem apontado pela Ana Rüsche, ainda seja necessário percorrer um longo caminho até o fim da discriminação e da violência contra as mulheres. Em segundo lugar, o objetivo é mostrar como essa questão se reflete nos concursos literários, que são um importante mecanismo não apenas de difusão da literatura, mas, principalmente, de fomento à própria criação literária.
Esses livros são “literatura feminina”? Não. Simplesmente porque isso de literatura feminina é bobagem. Literatura adjetivada... Se você quiser discutir essa questão, recomendo pesquisar sobre a polêmica que surgiu na última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Entendo que literatura é literatura, e sua adjetivação geralmente é uma forma de segregação da produção do “outro” — sendo este “outro” criado artificialmente, via discurso, para reafirmar os valores da cultura machista. Por isso, faço minhas as palavras que ecoam desde julho de 2015, segundo as quais esse adjetivo não passa de um “vetor de preconceitos típicos — uma literatura mais ‘emocional’, mais ‘leve’, mais ‘sensível’ —, como se esses atributos fossem os únicos da literatura escrita por mulheres” (a propósito, não deixe de conferir os números apresentados pelo Ronaldo Bressane com base na pesquisa da Regina Dalcastagnè). E encerro fazendo coro às palavras da Carola Saavedra: “à literatura interessa apenas o texto, seu valor literário, e, como toda criação artística, se faz e se esgota independentemente de qualquer teoria” (a propósito, não deixe de conferir a retrospectiva histórica que fundamenta a resposta da autora).
Por fim, você acha que ficou faltando algum livro na lista e quer fazer uma indicação? Vamos levar essa conversa para as redes sociais! Quem sabe a continuação da minha pesquisa revela um cenário mais promissor.